https://veja.abril.com.br/entreteniment ... -do-poder/
Quando Gellert Grindelwald (Johnny Depp) conjura as imagens do que está por vir, os feiticeiros e feiticeiras reunidos à sua volta sentem o sangue gelar : tanques rolando sobre as cidades da Europa, o céu sufocado pela fumaça das bombas e pela poeira dos escombros e, por fim, uma explosão como nunca se concebeu no passado, de uma luz capaz de cegar.
Se antes já parecia sedutora a mensagem que Grindelwald trazia a seus pares — a promessa de um mundo todo governado por magos — agora ela soa urgente : os seres humanos não têm competência para tomar as rédeas de seu destino.
Deixados à própria conta, em pouco mais de uma década (está-se na segunda metade dos anos 1920), novamente vão mergulhar o mundo no horror da guerra. Necessitam de uma mão forte que os guie; e Grindelwald está se apresentando para a tarefa com um pesar que o recomenda àqueles desejosos de persuadir-se. Como poderão os partidários de uma convivência pacífica entre magos e mortais comuns demonstrar que não, a supremacia de uns sobre outros é só um caminho diverso para o desastre ?
Animais Fantásticos — Os Crimes de Grindelwald (Fantastic Beasts : The Crimes of Grindelwald, Estados Unidos/Inglaterra, 2018) estreia no país nesta quinta-feira sem uma resposta para essa indagação, mas com o senso de que necessita comunicar algo fundamental ao seu público — um apelo contra a divisão e, sobretudo, contra o conselheiro traiçoeiro que é o medo.
Segundo filme de um total planejado de cinco, Os Crimes de Grindelwald vacila, em certos trechos, com uma narrativa menos desenvolta que a do primeiro Animais Fantásticos, de 2016.
Mas quando chega ao seu clímax redime-se completamente : talvez nenhum dos nove filmes ambientados no universo da inglesa J.K. Rowling tenha atingido tão alta voltagem. A linha é a mesma estabelecida pelo Animais Fantásticos original : nem tanto encantamento quanto na série Harry Potter, mas muita robustez no seu duplo entrelaçamento com a história real — a do período entreguerras do século XX e a do presente, na qual a autora e roteirista Rowling costuma demonstrar uma presciência notável. “É como se J.K. observasse a história do sopé, antes mesmo que a montanha se levante”, disse a VEJA Jude Law, que agora assume o papel de um Alvo Dumbledore jovem — ou “menos idoso”, ele corrige, apontando para as entradas na testa.
Dumbledore, diretor da escola de magia de Hogwarts, tem um papel decisivo na vida do magizoólogo (especialista em animais fantásticos) Newt Scamander (Eddie Redmayne) : é seu mentor e incentivador, por identificar nele um atributo raro. Ou, mais precisamente, a rara ausência de um atributo — Newt não cobiça o poder, e essa pureza talvez faça dele o único feiticeiro imune à sedução de Grindelwald.
Curiosamente, embora sejam os dois mais poderosos feiticeiros vivos, nem Dumbledore nem Grindelwald estão dispostos a um enfrentamento direto; algo, no passado, os liga.
Em uma espécie de combate por procuração, Grindelwald busca Credence (Ezra Miller), o garoto órfão de inimaginável potência destrutiva, enquanto Dumbledore recruta Newt para chegar a Credence antes que seu inimigo ponha as mãos nele.
Alianças instáveis movem os personagens de Os Crimes de Grindelwald, tanto os que já vêm do primeiro filme — entre os quais o padeiro Jacob Kowalski (Dan Fogler) e as irmãs Tina e Queenie Goldstein (Katherine Waterston, numa atuação pálida, e Alison Sudol, novamente radiosa) — quanto os que surgem agora, como Leta Lestrange (Zoë Kravitz) e o alquimista Nicolas Flamel (Brontis Jodorowski).
Mas, apesar de não serem os personagens com mais tempo em cena, Dumbledore e Grindelwald é que são o cerne do filme. Por meio deles, J.K. Rowling retoma aqui um tema central de Harry Potter : a maneira como os segredos pessoais do passado viram armas capazes de se voltar contra todo um futuro coletivo.
Jude Law, que vem do auge de sua carreira até aqui, com a série The Young Pope, previsivelmente faz um trabalho belíssimo como Dumbledore.
A surpresa, dados os altos e baixos dos últimos tempos, é que Johnny Depp não fica atrás. Em um desempenho repleto de gravidade, distinguem-se nele paixão e rancor, e também cálculo e desequilíbrio. Nas mãos de Depp, enfim, Grindelwald é uma personificação eficaz da tentação autoritária que vem ganhando espaço na geopolítica atua l: não é que seus argumentos não tenham uma cota de mérito — é a maneira como ele os maneja que se prova insidiosa e, em última análise, enganosa.
O antídoto contra esse feitiço já vem contido, de certa forma, no próprio filme, ou no modo como ele é feito. Sexto trabalho de J.K. Rowling dirigido pelo inglês David Yates, a esta altura quase um cocriador do universo da autora, Os Crimes de Grindelwald é um exemplo eloquente de como a colaboração verdadeira entre as equipes técnica, criativa e dramática multiplica qualidades e enfraquece defeitos.