memórias da música brasileira
Flora e Airto, duas vidas dedicadas à música brasileira
sugestão musical para os companheiros de luta
Flora Purim e Airto Moreira – montagem – DCO
Lançado em 1974 ainda em formato de disco de vinil, o álbum “500 Miles High – At Montreux”, de Flora Purim, registra a gravação ao vivo de sua apresentação no famoso festival de jazz anualmente realizado na Suíça, tratando-se, certamente, de um dos melhores momentos da música brasileira e, entre os numerosos trabalhos da cantora, um dos mais criativos. Flora Purim, infelizmente pouco conhecida no Brasil, um país próspero em cantoras, pode ser colocada com justiça ao lado de artistas tais quais Clara Nunes, Beth Carvalho, Elis Regina e Gal Costa; lembrar-se dela é recordar de seu companheiro Airto Moreira, baterista e percussionista reconhecido mundialmente, parceiro de Hermeto Pascoal e Miles Davis em numerosas gravações.
Conheci o casal quando eu era adolescente, nos finais da década de 1970; na época, nas então lojas de disco, desde aquelas modestas, localizadas nas esquinas e galerias do centro da cidade de São Paulo, às redes especializadas, tais quais a Hi-Fi e o Museu do Disco, encontravam-se facilmente álbuns de música instrumental brasileira: (1) os clássicos do chorinho – Altamiro Carrilho e Waldir Azevedo ainda viviam –; (2) músicos da década de 50, entre eles Zimbo Trio e Milton Banana; (3) propostas ousadas levadas adiante por Paulo Moura, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Wagner Tiso, Sivuca; (4) artistas brasileiros residentes no exterior, representados por Eumir Deodato, Nana Vasconcelos e o casal Flora Purim e Airto Moreira.
Entre tantos trabalhos do casal, escolhi comentar a apresentação no Festival de Jazz de Montreux por ser registro ao vivo, sem mediações dos técnicos de estúdio para reparar eventuais erros de desempenho. Ao vivo, motivados por públicos receptivos, os músicos tendem a se colocar mais intensa e sinceramente do que nas gravações em estúdios, além disso, a concepção de música brasileira expressa naquela apresentação é distante das mais afinadas com a cultura de massas, portanto, alinhadas com a música comercial.
Geralmente, quando são traçadas as histórias da música brasileira, suas vertentes instrumentais são vergonhosamente esquecidas, ninguém se lembra de Ernesto Nazaré, Chiquinha Gonzaga, Amélia Nery, Helena Meirelles, Pixinguinha ou Jacó do Bandolim. A bossa nova, sem as contribuições de Moacir Santos, Edson Machado, Milton Banana, Tenório Júnior etc., sequer chegaria a existir; boa parte da carreira de artistas da MPB está diretamente ancorada nos músicos instrumentistas das bandas acompanhantes, a carreira de Jorge Ben, por exemplo, seria outra sem o Trio Mocotó e a Cor do Som. Da chamada vanguarda musical brasileira, com exceção de Tom Zé, praticamente todos seus representantes são da música instrumental: Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Wagner Tiso, Grupo Um, Divina Increnca, Fredera, Cor do Som… Airto Moreira e Flora Purim.
Nessas histórias, tudo se passa como se houvesse uma determinação musical em relação à cultura brasileira, fazendo toda nossa música, passando pela bossa nova de Tom Jobim e João Gilberto, culminar no tropicalismo, mas apenas aquela vertente representada por Gilberto Gil e Caetano Veloso. Ora, são indubitavelmente as inclinações mais pequeno-burguesas de nossa música; nesse verdadeiro singer system, centrado nas performances de cantores e cantoras, os instrumentistas não passam de meros acompanhantes, facilmente substituíveis, enfim, os proletários da música diante dos patrões, os donos das bandas. Contrariamente, Flora Purim é diferente de tudo isso, em todos os seus trabalhos a participação dos instrumentistas é devidamente valorizada; em suas performances, nunca faltou espaço para os solistas e improvisadores, sempre prontos para renovar sua arte, e essa postura se evidencia nas apresentações ao vivo, por isso a sugestão do álbum “500 Miles High – At Montreux”.
Naquela noite, em 1974, Flora se apresentou com o companheiro Airto Moreira, quem dividiu a bateria e a percussão com Robertinho Silva, os tecladistas Wagner Tiso e Pat Rebillot, o contrabaixista Ron Carter e o guitarrista David Amaro. Por fim, chamo atenção para a interpretação da banda para o clássico de Ary Barroso, “Na baixa do sapateiro”, cujas concepções vocal e instrumental lamentavelmente não foram levadas adiante por seus contemporâneos nem pelas gerações futuras, cada vez menos envolvidas com a qualidade e a criatividade propriamente musicais.
O álbum está disponível integralmente no YouTube; desejo uma boa sessão musical para os companheiros.
Capa do álbum “500 Miles High – At Montreux”
https://www.causaoperaria.org.br/rede/d ... rasileira/