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O Partido dos Trabalhadores (PT), o governo Lula e grupos de esquerda mobilizaram, nos últimos dias, uma rede de influenciadores digitais e páginas militantes para pressionar o Congresso Nacional, repetindo táticas que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem enquadrado como "milícia digital" quando empregadas por apoiadores da direita.
Não houve nenhuma reação da Corte até o momento.
A atuação digital do PT cumpre todos os requisitos para embasar medidas da Corte segundo os critérios dos inquéritos abusivos recentes: visou diretamente um Poder da República, e usou estratégia coordenada para disparos massivos.
A ofensiva do PT e da esquerda começou depois da decisão do Congresso de derrubar o decreto presidencial que aumentava o IOF.
Em resposta, o governo Lula e a Secretaria de Comunicação (Secom) lançaram uma campanha coordenada de disparo massivo contra o Congresso, com vídeos feitos com IA e o engajamento de centenas de influenciadores em narrativas de confronto contra o Congresso.
Na semana passada, o PT promoveu uma reunião com mais de 700 influenciadores aliados (o número foi informado pelo próprio partido) para discutir a tática contra o Congresso.
Estavam presentes o presidente do partido em exercício, Humberto Costa; o secretário de Comunicação do PT, Jilmar Tatto; o publicitário Otávio Antunes; o advogado Marco Aurélio de Carvalho, do grupo Prerrogativas; e representantes da Fundação Perseu Abramo (FPA), vinculada ao PT.
A FPA lançou no mesmo dia o projeto "Pode Espalhar", cujo objetivo é disseminar conteúdos pró-governo em grupos de WhatsApp e redes sociais. O plano é manter a militância em constante estado de mobilização digital – uma espécie de campanha eleitoral permanente.
O nome da agremiação de influenciadores é "Clube de Influência Eu Tô com Lula".
A Frente Povo Sem Medo (FPSM), que reúne vários grupos de esquerda próximos do PT, como o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), a UNE (União Nacional dos Estudantes) e a CUT (Central Única dos Trabalhadores), reforçou o coro com conteúdo mais agressivo, usando imagens do Congresso em chamas.
O slogan "Congresso Inimigo do Povo" foi empregado pela FPSM e por vários influenciadores e parlamentares de esquerda, como a deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL).
A expressão "Congresso inimigo do Povo" começou a virar tendência na terceira semana de junho. Há vários indícios de uma coordenação artificial para impulsioná-la.
Segundo o jornal O Globo, que solicitou relatório de uma consultoria sobre o tema, o movimento artificial para turbinar ataques contra o Congresso começou no dia 17 de junho de 2025.
No dia 20 de junho de 2025, o jornalista Xico Sá, do site de esquerda ICL Notícias, ajudou a emplacar a expressão em sua coluna. No mesmo dia, o Diálogo e Ação Petista (DAP), uma ala mais radical do PT, publicou um artigo com "Congresso Inimigo do Povo" no título.
Movimentos da direita muito mais modestos do que esse, envolvendo bem menos pessoas e sem uma coordenação como a do PT, foram alvos do STF no inquérito das milícias digitais e em outras investigações nos últimos anos.
Ministros do STF citam com frequência, por exemplo, o "gabinete do ódio", um suposto grupo organizado composto por assessores ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
A expressão "gabinete do ódio", no entanto, não se originou de documentos oficiais nem de relatórios técnicos, muito menos da cabeça dos envolvidos. Surgiu pela primeira vez em uma reportagem de setembro de 2019 do jornal O Estado de S. Paulo e passou a ser adotada pelo resto da imprensa e por ministros, em especial pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes.
Embora frequentemente mencionada em discursos e decisões, a existência do "gabinete do ódio" nunca foi descrita de forma clara por órgãos de investigação, e nunca se apresentaram provas de uma estrutura ilícita formalmente organizada.
Ainda assim, as ações têm sido apresentadas como parte de um esquema de milícia digital, com a Polícia Federal e o Judiciário atribuindo aparência de organização clandestina a práticas que não configuram crime.
Já a campanha digital organizada pela esquerda nos últimos dias tem contornos concretos : nomes, reuniões públicas com centenas de influenciadores, coordenação direta com dirigentes partidários, financiamento declarado e incentivo ao disparo massivo de vídeos, memes e slogans, com linguagem agressiva direcionada contra o Congresso Nacional.
A atuação inclui ataques frontais a parlamentares e imagens do Legislativo em chamas e uso de inteligência artificial para dramatizar as peças.
Apesar das semelhanças com o que o próprio STF costumava apontar como prática de milícia digital – mobilização de redes, produção agressiva de conteúdo e tentativa de descredibilizar instituições – a atuação do PT não gerou até agora qualquer reação das autoridades.
O jurista Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela USP, explica que a recente mobilização do PT no universo digital não tem nada de criminoso – assim como a da direita nunca teve.
"Certamente a ação do PT se enquadra no que se chamou de 'milícias digitais'. Agora, milícia digital não é um crime tipificado pela legislação. O problema são os 'dois pesos, duas medidas' do STF, que certamente não verá nenhum problema nessa conduta, uma vez que praticada pelo PT e aliados", diz o jurista.
Nos últimos anos, o STF construiu a narrativa jurídica de que a atuação da direita no mundo digital seria equiparável à de uma organização criminosa contra a democracia, por causa de críticas direcionadas ao Supremo e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com base nisso, instaurou inquéritos sucessivos, como o das fake news e o das milícias digitais, e determinou medidas contra políticos, jornalistas, empresários e influenciadores como bloqueios de contas, ordens de prisão e censura prévia.
Em 2024, parlamentares de oposição apresentaram ao STF e à Procuradoria-Geral da República (PGR) um pedido para que a atuação digital do PT fosse também investigada como "milícia digital", diante de reportagens que revelaram reuniões frequentes entre a Secom, lideranças do partido e influenciadores para articular narrativas. A resposta foi o arquivamento.
O procurador-geral Paulo Gonet alegou que não havia elementos suficientes para instaurar investigação, por falta de indícios de conteúdo ofensivo ou desinformativo. Segundo ele, reuniões entre a Secom e influenciadores para alinhar comunicação são compatíveis com a rotina de uma secretaria institucional.
Para Flávio Gordon, doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colunista da Gazeta do Povo, "não é mais possível esperar qualquer isonomia" da elite estatal. "A natureza do regime STF-PT está escancarada, e me surpreende o quanto grande parte da sociedade ainda raciocina e se exprime de maneira que já não corresponde à realidade política. Creio que é sim, ingenuidade, acreditar em isonomia e critérios objetivos. 'Ingenuidade' para falar o mínimo", diz.
Tratar a atual situação com a linguagem convencional sobre as instituições, para ele, é um erro. "Há um certo ponto em que a ingenuidade arrisca se transformar no que [o filósofo] Eric Voegelin [1901-1985] chamou de 'estupidez criminosa' – ou, poderíamos dizer, cúmplice. Então eu creio que na própria linguagem com que falamos do fenômeno atual devemos ter o cuidado de não reproduzir nostalgicamente termos que já não correspondem às coisas. O que há ali não é uma corte, mas um partido em forma de corte; o que temos ali não são ministros, mas quadros político-partidários 'em situação de' ministros ou magistrados. E, uma vez que a separação e independência entre Poderes foi para as cucuias, eu acho importante sempre sublinhar se tratar de um regime composto por elementos de dois poderes: por isso, uso 'regime PT-STF'", diz.