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Criador dos personagens mais populares do quadrinho nacional, Mauricio de Sousa é uma figura especial para as crianças que cresceram com seus gibis.
O desenhista, aliás, se gaba, estimando que, desde 1960, nada menos do que quatro gerações foram “formadas” pelas histórias da Turma da Mônica.
Os leitores de todas a idades conhecem sua figura e fisionomia (seja a real, seja a desenhada, que frequentemente aparece no universo da turma).
Mas pouco sabem sobre os bastidores da criação de seu império, que hoje tem mais de 1 bilhão de gibis vendidos, 400 personagens e 3 mil produtos licenciados.
Primeira autobiografia do quadrinista, “Mauricio — A história que não está no gibi” chega nesta segunda às livrarias para suprir esse vazio.
E já teve seus direitos vendidos para o cinema. Deve virar um documentário com previsão de estreia em 2018.
Mais do que retratar a intimidade do biografado, porém, o livro joga luz sobre 60 anos de indústria de quadrinhos no Brasil, detalhando as evoluções econômicas e tecnológicas do mercado, além da extenuante vida de seus artistas, editores e empreendedores.
— Essa união de fatos da minha vida e do que aconteceu ao meu redor deu no que deu, no meu estúdio como é hoje. Todos os fatos de uma vida, da minha inclusive, se releem. Alguma coisa da minha experiência influencia o que acontece hoje e vai acontecer amanhã — diz o desenhista, que aproveitou um problema de saúde no ano passado para escrever. — Durante o tratamento, tive um tempinho, e então deu para terminar.
Escrito no espaço de um ano a partir de cerca de 60 entrevistas que o biografado concedeu ao jornalista Luis Colombini (autor de “Guga, um brasileiro”, uma biografia do tenista Gustavo Kuerten), o livro cobre os 82 anos do desenhista, com muitas revelações.
Por exemplo : Mauricio nunca se formou no ginásio porque foi preso no dia da prova final. Ele tinha então 18 anos, e, para ajudar a família, havia acabado de arranjar um emprego — o seu primeiro — como datilógrafo numa empresa suspeita. Mesmo sem ter envolvimento algum nos golpes dados por seu chefe, a polícia não quis saber : invadiu o escritório e prendeu todos os funcionários. O futuro desenhista suplicou às autoridades, mas só foi solto dias depois.
Era a sua quarta — e última — tentativa de se formar. Antes, fora reprovado três vezes por um professor vingativo, que começara a persegui-lo depois de ser alvo de uma caricatura. E, aí, mais uma revelação: Mauricio arranjou tantas confusões com caricaturas que prometeu a si mesmo nunca mais fazê-las. A gota d’água foi como ilustrador na “Folha da Manhã”, nos anos 1950. Seu desenho do então prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, na primeira página provocou a ira do político, que proibiu os profissionais do grupo Folha de pisar em repartições públicas por um mês.
A relação de Mauricio com a política, aliás, é um dos pontos mais delicados do livro. Alguns episódios traumáticos servem para explicar por que ele alega não querer misturar ideologia e arte. Durante sua infância, o pai foi perseguido por escrever artigos contra políticos. Depois, no início dos anos 1960, o próprio Mauricio ganhou — uma falsa — fama de comunista ao liderar o sindicato de desenhistas. Resultado: virou persona non grata no mercado de São Paulo e teve que vender suas tirinhas apenas para veículos do interior nos primeiros anos de sua carreira.
Na mesma época, ele conta ter recusado convites do governo do Rio Grande do Sul, então liderado por Leonel Brizola, para que se mudasse para lá e adaptasse seus personagens a serviço da causa socialista. Diz que recebeu até ameaças de um estranho ao telefone, mas não arredou pé. Muito criticado até hoje por fazer histórias “alienadas”, Mauricio defende que não queria que suas criações se transformassem em “fantoches ideológicos”. Em 1965, porém, aceitou ceder os personagens para campanhas educativas do governo militar.
A biografia avança à medida que Mauricio vai vencendo etapas na carreira. No começo, tudo parecia improvável : estava desempregado, endividado, tinha duas filhas para alimentar e não podia bancar uma equipe para ajudá-lo nas dezenas de tiras que desenhava por mês. Na falta de um syndicate (empresas que compram conteúdo de quadrinistas e o distribuem para a imprensa) no Brasil, ele se tornou ao mesmo tempo produtor e distribuidor incansável, fazendo longas viagens de trem para negociar seu trabalho em cidades de todo o estado de São Paulo.
A insistência funcionou, e ele foi ganhando espaço na grande imprensa. E os personagens se multiplicaram (os primeiros foram Bidu e Franjinha, de 1959). Depois dos jornais de circulação nacional, vieram os gibis (inicialmente na editora Abril e depois na Globo, onde, nos anos 1980, chegaram a vender 6 milhões de exemplares em um mês). O fio condutor do relato é a teimosia assumida, que, às vezes, o faz parecer Cebolinha, bolando seus planos infalíveis contra Mônica — com a diferença de que os do desenhista costumam, quase sempre, dar certo.
— Hoje um quadrinista tem muito mais janela e facilidade para emplacar o seu trabalho do que quando comecei — compara Mauricio. — Você faz uma tirinha boa na internet e não tem fronteiras. Só que as coisas também mudam. Se, no começo eu usava tirinhas do jornal para difundir meus personagens para o grande público, agora temos também o YouTube, onde colocamos recentemente a “Mônica Toy”, pequenos desenhos animados sem fala, só com efeitos especiais. E de repente isso está chegando na Rússia, nos EUA e no Japão, com números alucinantes. Temos já 1 bilhão de visualizações.
Uma das grandes decepções de Mauricio foi nunca ter conseguido emplacar seus quadrinhos no exterior. No livro, aliás, ele fala abertamente sobre seus fracassos e percalços. Revela também desavenças que teve ao tratar de negócios com o Grupo Folha, o Grupo Abril e a TV Globo.
— Coisa desse tipo eu nunca tinha falado — afirma o quadrinista. — Mas foi tudo muito, muito suavizado.