Nada nem ninguém poderá barrar o guardanapo de Cabral e sua insaciável turma como símbolo de uma era cafona onde imperou o (mau) gosto emergente expresso naquela cena bizarra, nas cores e traços de Romero Britto e na sola vermelha do sapato da madame.
A ostentação dos novos ricos virou esculacho-ostentação e foi dar em Bangu, onde a escumalha é hóspede do estado. Lá onde a parede sua, como se diz na malandragem, em alusão ao clima saariano do bairro da antiga fábrica de tecidos. No verão mais ainda.
Tamanho deslumbramento e gosto pela bandidagem deixou de ser um simples pecadilho e virou pecado mortal, de vida ou morte, quando a cobiça desconheceu qualquer regra, lei ou respeito ao destruir o Maracanã. Ainda falaremos muito aqui e em breve, nessa humilíssima trincheira, da mãe de todos os pecados de nossos tempos: a destruição do Maracanã. Por hora vamos nos ater a cafonice dos novos ricos, a inexorável marcha para trás dos tempos no rumo da barbárie emergente de Cabral e Paes.
Sim, o alcaide metido a bocudo, a homem sem papas na língua, almofadinha com curso intensivo para ver se pegava duas ou três coisas de malandragem e do que achava ser um jeito carioca, típico janota que vai ao samba e compra elenco de apoio para se dizer local, sambando com os dois dedinhos para cima, também não resistia a sua essência cafona e emergente de deslumbramento entre seus pares.
Sua administração flertou com isso várias vezes. Mas como tinha ao seu lado e no bolso a maior fatia daquela que chamei aqui da “imprensa de cócoras”, foi passando despercebido em sua volúpia de, no fundo, transformar as coisas boas em uma grande ala vip e deixar o resto da turba no papel de carregador das cordas que isolam a turma do cercado.
Ensaiou no carnaval, transformado por ele em um negócio monstruoso que, como tal, pariu obviamente um monstro, alimentado por finos contratos com cervejaria (em algum momento os termos disso serão revelados). Diante do monstro gerado, um secretariozinho do prefeito apontou para os culpados de sempre: “o problema é que o povo não tem educação, por isso temos problemas”. Fizeram o primeiro teste, teve bloco da Preta Gil com cordas e área vip, fazendo arder décadas de história. A providencial gritaria causou o recuo estratégico. Mas cercaram pelos outros lados.
E o prefeitinho foi botando os pés e mãos na festa de Momo. Como imaginava que só ele era o rei no furdunço, tinha certeza de que os outros eram os bobos da corte. E naturalmente éramos mesmo. Subitamente rasgou elogios naquele 21 de fevereiro de 2012 para a São Clemente. Sua estratégia ia ficando mais clara: “Reparem a São Clemente. É um exemplo de como os recursos à disposição das escolas de samba permitem um grande carnaval. Precisa de gestão profissional, precisa de gente séria. Você está vendo esta escola? Entrou um cara, um superprodutor, o Calainho, que está fazendo um carnaval que está deixando a Beija-Flor com vergonha. Então, mostra que dá para fazer muita coisa com aquilo que é disponibilizado às escolas. A gestão profissional é a transparência de recursos que são aplicados de fato no desfile”, afirmou, sem pudor e respeito.
Logo depois chegava a explicação (e a conta para o contribuinte) daquelas palavras inocentes sobre o produtor amigo do rei: soube-se que a prefeitura tinha pago a L21, do mesmo Calainho, pela produção dos bailes da cidade, a módica quantia de R$ 2,950 milhões (ah, Bangu…). Entre eles o Baile da Cidade e o Grande Baile Gay, no Jockey Club. Para entrar, R$ 100 e R$ 500 reais.
Num arroubo típico de quem é da corte do rei e sabe que não existem limites para quem está à mesa do monarca, Calainho, bafejado pela ascensão a novo promoter da festa na cidade, deu o passo a mais que essa turma sempre dá nessas horas. Fruto dessa falta de limite, por esse eterno se sentir acima do bem e do mal. E das leis. Sonhou alto, e rasgou em seus devaneios toda uma história de baianas, pretas-velhas, malandros, blocos de sujo, Zé Pereiras, Praça XI, Rio Branco, Intendente Magalhães, compositores e poetas, daquela turma para qual acaba tudo na quarta-feira de cinzas. Desconheceu toda uma história e tradições para ver os cifrões. E comparou o incomparável, aquilo que Joãozinho chamou de ópera de rua, para imaginar padronizado, pasteurizado e industrializado: “O desfile do Rio tem condição de se transformar numa franquia internacional, como é o Cirque du Soleil”. Leia de novo, ele falou isso mesmo.
Foi avançando o prefeitinho. Do carnaval chegou até a praia. Sempre seguindo o mesmo discurso pronto para seduzir os mesmos incautos de sempre: ordem e progresso. Choque de ordem. Como faltou a algumas aulas em seu intensivo de malandragem, vira e mexe derrapa. Bota as desculpas da derrapada no “excesso de carioquismo”, envergonhando São Sebastião e seus devotos. Entre as aulas que faltou, o mauricinho perdeu aquela do mate em galão, instituição da cidade. E mandou ripar a turma que veste laranja nas areias. De novo a grita foi grande. Deve ter perguntado a Pedro Paulo, o fiel escudeiro, porque ele não passou o ponto daquela aula. E nessa rotina de testar limites e ver até onde podia ir, foi pra cima dos barraqueiros da areia. Não é possível que tivesse faltado logo naquela aula. Logo os barraqueiros. Que todo carioca da praia tem um como anjo da guarda. O que olha a carteira enquanto vai no mar, o chinelo, aquele que ainda deixa pagar amanhã. Que muitas vezes vira amigo, troca ideias… Com efeito… Logo essa aula no intensivo de Zé Carioca, prefeitinho? Deu ruim na repercussão de novo e não deu pra tocar nos barraqueiros. Do contrário, hoje provavelmente teríamos uma sequencia de Fasanos, Geros e barracas gourmets encarapitadas na areia. Quem duvida? Nessa direção, chegaram a rascunhar um “Beach Club”, um pedaço de areia ali no cercado de área militar do posto seis, onde entrava-se pagando para ouvir música eletrônica e tomar champagne na praia. Novamente houve o rechaço para que o Rio jamais fosse um desfile jurereniano ou miami-beachiano de homens com gel na praia a côté de turbinados silicones foi grande e não emplacaram.
Mas antes de sair, ao apagar das luzes, deixou a perversa herança de quem se vestia de carioca de cursinho intensivo de dia e de noite fazia da cidade plataforma de “business”. Sempre com os amigos do rei. Sempre na contramão da história da cidade. Sempre com traços indeléveis da mais profunda cafonice e mal gosto.
Foi assim que de uns meses pra cá mudou a paisagem da praia do Leblon. No lugar do sagrado encontro nas areias, onde a cidade, ainda que com frágeis amarras exercita alguma pluralidade e asfalto pode se encontrar com morro, plantou um medonho templo de consumo à beira-mar. Bem no lugar onde a turma lá do Jacaré costuma ir, mesmo que agora tenha uma revista no ônibus durante o percurso. Um bantustão ao contrário: do lado de dentro os brancos, de fora os negros, salvo aqueles que estiverem servindo. E a cena é chocante, ostensiva, remetendo a uma África dos tempos de apartheid: um batalhão de seguranças enfileirados zelando pelos poucos privilegiados. Em plena praia. Uma aberração sem precedentes na urbe, quebrando toda e qualquer tentativa de diversidade. Rumando em marcha acelerada ao século XIX, para o qual só falta uma liteira adentrando o espaço com alguns negros carregando a sinhá. Um desses “territórios exclusivos” já está lá. Outro se abre em poucos dias. Nos tapumes, o anúncio que ofende uma tradição de cidade revela o que vem por aí: “Bar de ostras, …lagosta…champagne..vinho branco gelado…jarras de drinks…música boa, areia, sol, mar e…verão”. É a Valmarchiorização de São Sebastião andando em passos largos.
Por um momento, imaginei estar passando por Orlando ou cafonice que o valha. Jamais na São Sebastião do Rio de Janeiro que aprendi a amar. De Noel, Cartola, Pixinguinha, Aldir, Monarco, Monsueto, Cachaça, Sargento, Vinícius e tantos outros.
Na era em que as principais capitais do mundo zelam pela certeza de que moderno é a mistura, Berlim, Toronto, Nova Iorque, Paris, Londres, tentam cada dia mais liquidificar tudo, nossa caricatura de Zé Carioca deixa de herança um enclave onde água e azeite jamais se encontrarão. Deixando no ar a tensão que já se faz presente. De um lado, a turma que atravessa o túnel e não pode mais se sentar para a sonhada cerveja. Dentro de parte do cercado vip, gente pagando mil reais (!) para estar no protetorado. É isso mesmo: há um chiqueiro vip onde, como deu no jornal, a reserva de lugar custa mil reais de consumo. E como nunca se viu por aqui, estouram champagne na areia.
Como todo amigo do rei sem limites, como já fora no Maracanã e em outros lugares, pouco importa a paisagem. Chegaram a botar um gerador com um tanque de óleo diesel em plena calçada, um monstrengo impensável fazendo a paisagem da orla parecer uma cozinha industrial. Milhares feridos em seus direitos para o deleite de meia dúzia. Ficou meses por lá, retirado apenas na semana que passou. Como sempre fazem, nessa dialética de testar e ver o que acontece, ver se cola, chegaram a enfiar um banheiro químico em pleno calçadão. Tiraram para não chamar muito a atenção. Quem sabe daqui a pouco… Não bastasse isso tudo, com a tal certeza de que podem tudo, romperam com uma tradição de anos da cidade, em que ninguém jamais combinou mas nunca se rompeu: em tempo algum, nenhum dono de quiosque ou barraqueiro ousou desrespeitar o direito individual de cada um botando caixas de som e música alta. Agora temos isso no tal curral vip. É mais uma certeza da tal exclusividade, de poder tudo. Afinal, imaginem se todos resolverem fazer o mesmo? Séculos de tradição se quebram na herança cafona que fica. Outro fato inimaginável e inacreditável: os limites do tal lugar se ampliaram da calçada para o trecho de areia em frente, que também agora é do amigo do rei. Nunca houve isso por aqui: mesas com cadeiras na areia. Tudo dominado.
Difícil entender como não enxergam o quão gerador de tensão para a cidade algo assim representa. O que era cidade-partida entre morro e asfalto vai se partindo também em um dos poucos lugares onde podiam se encontrar. E seguem rumando desabaladamente ao século XIX.
Infelizmente, não é gente chegada a muita literatura essa turma emergente. Se fossem, iria recomendar bravamente o imperdível “A Invenção de Copacabana”, de Julia O’Donnell. Está tudo ali. Para esses pobres moços que acreditam que promovem a modernidade, a explicação de como caminham para as trevas, como rumam retrocesso de dois séculos.
Está lá o triste retrato dos “aristocratas do Atlântico Ocidental”, aqueles que acreditavam que tinham mais direito ao mar e a orla porque “nem todos são como nós”. Um retrato pungente do que é a longa duração e a permanência dos hábitos de um país em que alguns seguem empenhados para que senzala e casa grande permaneçam vivas.
Sem muito se estender, valem brevíssimos trechos da obra que relata o imaginário de uma elite de mais de um século atrás que teima em seguir mais vivo do que nunca. Cada palavra parece e poderia estar sendo dita por alguns hoje. “…temos o direito de exigir para nós também carinhos que não se prodigalizam, porque nem todos são como nós”. Por carinhos exigidos, entenda-se o bantustão ao contrário, a garantia do apartheid à beira-mar. No relato da autora, a descrição daqueles que “tentavam fazer da região atlântica a base de um projeto específico de distinção”. Nesse Brasil da iminente cassação de todos os direitos conquistados há décadas e que parece pronto para aprovar a revogação da Lei Áurea, o projeto da nova orla do alcaide que saiu ganha tons definitivos.
Seria cômico se não fosse dolorosamente trágico reler o trecho em que a autora conta sobre a chegada do bonde na zona sul, abrindo a possibilidade de levar o povo do subúrbio até a praia. Qualquer semelhança com os relatos das tentativas atuais em se barrar a chegada dos ônibus além-túnel é uma trágica coincidência. Estamos falando de 1870. Mas podia ser 2017. “O novo meio de transporte enfrentou a resistência de certos setores da elite, como grupos de senhoras que condenavam a inevitável mistura de ‘gente do povo’ com ‘pessoas de hábitos educados”. Meu deus! Um século e meio se passou e a frase parece dita hoje…A cada verão em que vejo a frase do século passado repetida, me assusto profundamente com essa casa grande que insiste em não sair de cena. Essa presença tão forte da profecia de Nabuco, “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional”. Será que isso por si só não deveria significar reflexão profunda, a certeza de que vamos caminhando rumo ao abismo, ao fracasso?
Nossa tragédia cotidiana, entre tantas, é não perceber o quanto não avançamos, o quanto alguns, embora se arvorem em tão civilizados e modernos, não são nada além do que cabeças do século XIX.
Se vale como único consolo dessa tragédia, é que um já não pode botar seu guardanapo na cabeça à beira-mar no bantustão que sonhou. E outros podem estar a caminho de um Bangu que tanto quiseram fora de suas vistas. Desde a virada do ano já não há mais foro privilegiado.
Ps- Uma última palavra sobre o rei (posto), seus amigos e o bantustão ao contrário: no dia da inauguração, nem tem tanto tempo assim, Sérgio Cabral Filho estava lá. Brindando no tal chiqueiro-vip. Prova irrefutável da cafonice. Provavelmente a última aparição em público antes de virar um hóspede do estado. Há registro fotográfico da presença dele ali. Não sei se chegou a usar o banheiro químico do calçadão. Confortável não é, mas ainda assim é melhor do que o boi de Bangu.
Agência SportLight/Lúcio de Castro