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Uma coisa é certa e incontestável no Brasil : a fome de carne só aumenta.
Na última década, o consumo por pessoa cresceu, em média, de 39 para 42 quilos por ano. Ao mesmo tempo, nunca se falou tanto em equilibrar o consumo de proteína animal. Nos festivais ou no quintal de casa, uma nova ética consiste em entender o que está acontecendo e absorver essas transformações.
Comer menos carne e de melhor qualidade, comprar com consciência e confraternizar com as diferenças estão no topo da lista das novas boas práticas do churrasco.
“Ter uma alimentação baseada em vegetais não quer dizer que você é vegetariano ou vegano. Sou contra selos e radicalismos na alimentação”, afirma Lis Cereja, nutricionista e chef, além de vegetariana. “É mais saudável comer carne de um pequeno produtor do que ser vegano e se entupir de comida industrializada, tanto para a saúde quanto para o planeta.”
Cofundadora da Feira Naturebas e do projeto Criado Solto, ela enfatiza a importância do equilíbrio, seja no prato, seja no diálogo.
“Comer ou não comer carne é uma escolha pessoal. Fingir ignorância sobre a indústria alimentar e a indústria de animais, não. É um tema controverso e é difícil falar sobre isso sem ser superficial, pois é algo muito mais profundo do que muita gente pensa, e que, infelizmente, leva as pessoas à beira do fanatismo cego, de ambos os lados”, argumenta.
Em termos de churrasco, entrar num acordo é fundamental. “Afinal, quem acende a churrasqueira para comer sozinho ? O churrasco faz sucesso aqui porque o brasileiro se identifica com o acolhimento em torno disso, é da nossa cultura”, diz o chef e assador Fernando Carneiro, do restaurante especializado em churrasco Lolla Meets Fire, em São Paulo. Após um período na Nova Zelândia, ele é um dos pensadores da nova forma de consumir carne no Brasil. “A gente come pelo prazer e pelo conforto, além da fome. A proposta atual não é se empanturrar de comida, ficar com a barriga cheia e não conseguir nem dormir.”
De acordo com ele, com toda a tecnologia genética, novas raças de gado, cultivos de frutos do mar que respeitam as sazonalidades e processos ambientalmente responsáveis, comer bem está ainda mais fácil de digerir.
Sabe aquele número mágico de 300 gramas de carne por pessoa ? Não há regras. Experimente colocar na grelha porções mais generosas de abobrinha, tomate, cebola e metades de pimentões, que vai cozinhando aos poucos dentro do vegetal.
Entre os pratos mais disputados do Lolla Meets Fire está a costela defumada por mais de 8 horas no pit, equipamento especial para a técnica do churrasco típico dos Estados Unidos, que usa lenha de árvores frutíferas no preparo.
Até a manteiga servida com o pãozinho do couvert entra na defumação. Alimentos variados, como polvo, batata e abóbora, ganham versões deliciosas diretamente na brasa.
“O número de interessados em fazer fumaça em casa também aumentou”, garante o pitmaster e empresário Anderson Amar, da empresa Smoke Texas, em São Paulo. Especialista no preparo, ele passou a fabricar pits diante do aumento da demanda no ano passado. As versões domésticas, a partir de 1.800 reais, ampliaram a nova onda para as varandas gourmet e ainda garantem economia. “Com 1 quilo de carvão e 600 gramas de lenha, o cliente tem 10 horas de defumação a 150 graus, em média”, destaca.
Por ser uma cocção longa e em baixa temperatura, a técnica permite assar com excelência, por exemplo, o brisket, ou peito bovino, considerado erroneamente por muitos brasileiros como carne de segunda pela rigidez das fibras.
Com o método, é possível aproveitar os cortes dianteiros do animal. É algo bem diferente do nosso churrasco tradicional, feito em poucos minutos com carnes do traseiro bovino, que são naturalmente mais macias e vão direto à grelha sobre a brasa de carvão quente.
É preciso estar atento ao uso de lenha certificada no processo. Eucalipto, nem pensar. “Tem de ter nota fiscal comprovando que a lenha é originária de uma erradicação ou poda. Além disso, para os agrotóxicos não trazerem malefícios na hora do uso, desenvolvemos um processo que envolve os que trabalham na colheita das frutas a fim de gerar renda para a região produtora”, afirma Renato Andrade, proprietário da Special Meats, que vende o quilo da lenha a partir de 6 reais no atacado. A mesma preocupação quanto à procedência vale na hora de comprar carvão.
Para Eduardo Cocco, do frigorífico Cowpig, em Boituva, no interior paulista, com fazendas em Mato Grosso, a nova ética do churrasco também atinge a produção na aplicação de máximas condições possíveis de bem-estar animal, principalmente em relação aos animais confinados e aos tipos de manejo, que vem crescendo no Brasil, com condições de criação sustentável e sem agredir o meio ambiente. “A produtividade para o empresário rural deverá ser sempre o foco do trabalho, mas respeitando aspectos legais e morais”, diz.
Hoje, o consumidor tem duas grandes preocupações : a primeira, do ponto de vista gastronômico, da experiência; e a segunda, de como o alimento é produzido”, pontua Marcelo Shimbo, da marca 481, referência no mercado em padronização e alta qualidade. “Não aceitamos nenhuma alimentação para o gado que não seja vegetal nem uso de hormônio. Nossos frigoríficos são, além de inspecionados rigorosamente, auditados para garantir a segurança alimentar de maneira muito minuciosa”, explica.
Para uma compra sem erro, é possível customizar a espessura dos steaks e observar a escala de 1 a 5 identificada nas embalagens, que leva em conta sabor, maciez e suculência de cada corte.
Queridinha dos mais abastados, a carne da raça Wagyu pode custar 400 reais o quilo. Mas quantidade não é garantia de satisfação : o intenso marmoreio, ou gordura entremeada dos cortes, pede uma degustação moderada.
Da mesma forma, o dry aged, método de maturação longa a seco, que vai de 30 a 120 dias, que amacia e transforma o sabor da carne, também pede moderação no volume para ser bem apreciado.
Enquanto, no pasto, o resistente Nelore cede espaço pouco a pouco para as raças britânicas Angus e Hereford, a picanha também dá lugar na prateleira para pacotes com nomes estrangeiros, como chorizo (Argentina e Uruguai), T-bone (Estados Unidos) ou entrecôte (França). “Ainda é grande o volume, em torno de 80%, de animais Nelore em nosso rebanho. Mas cada vez cresce mais a inseminação artificial com as raças europeias continentais e britânicas. Isso está mudando o perfil da pecuária nacional”, diz o agrônomo e consultor Roberto Barcellos, que criou uma linha própria de cortes nobres, a BBQ Secrets, em parceria com o frigorífico Frigol.
“Esse é o tipo de consumo que, depois que começa, torna-se um aprendizado do qual não se abre mão”, opina Pedro Merola, engenheiro agrônomo e sócio-proprietário do açougue-butique Feed, em São Paulo, que vende carnes da própria fazenda, em Goiás. “Minha família mexe com gado há cinco gerações, e só em 2007 passamos a pensar o que queríamos no prato e a procurar na fazenda como chegar a esse resultado.”
De uma família de açougueiros com mais de um século de tradição, Rogério Betti produz e vende 100 toneladas de carne de cruzamento de Angus com Nelore e já fez churrascos até para xeiques árabes em Dubai. Ele resume o que considera ser a nova ética no segmento : “É comprar um animal de alta qualidade, bem tratado, pagar um bom preço ao fornecedor, ter minha margem de lucro e meu cliente ficar satisfeito”.
Para Rogério Betti, quando o consumidor pede uma carne de qualidade, come menos e não tem desperdício. Ele prega a democratização do consumo. “No meu restaurante vêm pessoas simples, que consomem 25 reais, e milionários que pagam contas de 10.000 reais. Acho que churrasco é isto : diversão para todo mundo”, afirma.