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No centro esvaziado de São Paulo, a rua general Júlio Marcondes Salgado, no bairro de Campos Elíseos, amanheceu tomada por usuários do Bom Prato nesta terça-feira (24).
Foi o primeiro dia no qual o serviço, que oferece almoço e jantar por R$ 1, passou a servir refeição em marmita para evitar aglomerações dentro da unidade.
A Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social disse, em nota enviada à Folha, que a procura pelo serviço desde o último dia 16 caiu 30%.
A unidade de Campos Elíseos, no entanto, bateu sua meta de 1.900 marmitas e cinco pessoas não puderam ser atendidas.
A região é uma das que mais agregam população vulnerável. São moradores em situação de rua e usuários de drogas, em um momento em que os serviços sociais estão sendo interrompidos com a crise financeira e a desistência de voluntários com o medo do novo coronavírus.
A poucos metros dali, na rua Helvétia, por exemplo, havia uma instituição católica que fornecia mais de cem refeições por dia e já não atende mais.
Sem poder permanecer no salão diante da pandemia, idosos, moradores de rua, garis, motoboys e profissionais autônomos ficaram na fila por até 30 minutos.
Pagaram R$ 1, alguns utilizaram álcool em gel sobre um balcão improvisado e saíam com a sua embalagem de isopor (feijão, arroz, coxa de frango e abobrinha).
A cidade tem 24,3 mil pessoas em situação de rua e, dessas, 2,2 mil têm mais de 60 de idade, segundo o censo da prefeitura divulgado em 2019.
Apesar da maioria da clientela estar em situação de rua, a assessoria da Secretaria do Desenvolvimento Social recomenda que o consumo seja feito em domicílio. "Por isso mesmo não entregamos talheres para consumo imediato. Vamos continuar reforçando esta orientação para nossa equipe e usuários do restaurante", disse nota enviada à Folha.
Das 11h às 12h30, 1.250 marmitas foram servidas. No total foram feitos 320 kg de carne de frango, 240 kg de arroz, 200 kg de abobrinha e caldeirão equivalente a 200 litros de feijão, segundo a nutricionista e gerente do restaurante, Irine Souza.
Idosos, como o aposentado Lindoberg Bezzera Queiroz, 92, desafiavam o perigo da Covid-19. Ele mora sozinho, próximo ao Metrô Santa Cecília, e diz que há anos faz suas refeições no Bom Prato.
A unidade no Campos Elíseos foi fundada em 2001 e é uma das únicas que ficam abertas aos sábados e domingos.
Nesta terça, ele manteve a rotina de ir até o local com passos lentos e prosas com os vizinhos. “Essas doenças não pegam em mim, não”, disse Queiroz.
Para o motoboy Márcio Rogério Campos, 50, a Covid-19 é uma invenção para satisfazer interesses comerciais. Campos mora em Osasco e, por conta do custo-benefício, almoça nas unidades Bom Prato.
“Espero que eles não fechem o Bom Prato, porque em um restaurante qualquer a gente gasta mais de R$ 15”, disse o motoqueiro, que ficou na fila, mas, ao saber que talheres não seriam fornecidos, desistiu e foi almoçar em sua casa na Grande São Paulo.
Segundo Célia Parnes, secretária estadual de Desenvolvimento Social, o formato express vai garantir a continuidade do serviço voltado a população mais vulnerável. “Esta e outras medidas da pasta social estão sendo anunciadas como parte dos esforços de combate ao coronavírus”, disse.
Em todo o estado, são 59 unidades funcionando e mais de 90 mil refeições servidas diariamente. O governo paulista concede subsídio de R$ 4,70 para cada refeição de adulto e de R$ 5,70 para crianças com até seis anos, que não pagam.
A reportagem ouviu mais de dez relatos. Ao contrário de Queiroz e Campos, a maioria demonstrava preocupação com a pandemia e as suas consequências. “Vocês, jornalistas, sabem se vão conseguir achar uma vacina?”, perguntou Junior Pereira, 34.
Natural da Bahia, ele mora em uma pensão na região do Brás desde 2012 e é autônomo: vende doces na
rua, e está desde a semana passada se alimentando no Bom Prato.
“A gente vem com medo de pegar o vírus, mas o dinheiro parou de circular. Eu me alimentava num restaurante no Brás, fazia bico para eles, mas fecharam semana passada", disse Pereira.
O baiano fez uma cobrança ao serviço. Lamentou que, além de ter que comer na rua, o Bom Prato tenha parado de oferecer pão e suco a partir desta terça.
A gerente do Bom Prato disse que, por conta do custo extra com as embalagens, o governo estadual manteve apenas a refeição.
A Secretaria disse que foi necessário fazer ajustes no cardápio por conta da acomodação nas embalagens e acomodação dos alimentos. A pasta disse que o preço das embalagens, no entanto, não interferiu no serviço. "As medidas foram tomadas com base na saudabilidade e qualidade dos alimentos."
O jardineiro Cláudio Ferreira da Silva, 47, mora em uma pensão na região da Luz. A diária custa R$ 10 e, como ele diz, "a comida, é a gente que se vira". Nesta terça, o jardineiro foi um dos primeiros a chegarem no local, e com o seu talher. “Vim cedo [10h30] para evitar o tumulto, não teve jeito. Eles [funcionários do restaurante] pedem para manter distância mínima de um metro, ninguém respeita.”
O pedreiro Anderson Oliveira, 34, trocou a Bahia por São Paulo há oito anos. Mudou com a expectativa de crescer na construção civil. Sem emprego, Oliveira conta que não conseguiu mais pagar um aluguel, fez amigos nas ruas e mora em um centro de acolhida mantido pela prefeitura na Barra Funda.
“Não gostaria de vir, eu vi na televisão o quanto falaram para evitar aglomeração. Mas, se eu não comer aqui, vou passar fome. Adianta eu não correr risco e morrer de fome?. Espero que não fechem.”