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Eram quase sete horas da manhã do dia 18 março, na cidade do Rio de Janeiro, vendedores ambulantes no trem da SuperVia, anunciam : "comprar barato não é vergonha ! 1 é 2, 3 é 5 !".
Durante as paradas nas estações, avisos sonoros orientam sobre o uso obrigatório de máscaras, a higienização das mãos e o distanciamento de 1,5 metro.
Mas na realidade tudo fica no papel pois os trens estão sempre lotados e as orientações são seguidas por apenas alguns passageiros porque não há fiscalização.
Assim milhares de pessoas seguem rumo aos seus compromissos, seja a trabalho ou estudo. Essa é a realidade de muitos brasileiros, que pouco viram mudanças em suas rotinas no transporte público diante da pandemia do Covid-19.
Enquanto um trem estava lotado numa viagem de quase duas horas, do outro lado da cidade a praia seguia interditada, banhistas e vendedores ambulantes estão proibidos de pisar na areia com fiscais e policiais rondando o local a todo o momento. Algo que tem revoltado algumas pessoas que denunciam o que seria uma hipocrisia : Enquanto os ônibus estão liberados para circular, muitas vezes lotados, locais abertos como a praia, são interditados.
Essa situação não é exclusividade dos trens do Rio de Janeiro. A reportagem também presenciou na última segunda-feira, dia 22, aglomerações, comércio irregular e até música nos metrôs de São Paulo em apenas uma hora de viagem. E também recebeu relatos de todo o país de pessoas apontando situações semelhantes.
Apesar de os muitos governos estaduais e prefeituras assegurarem a segurança do transporte coletivo, ainda não estão totalmente claros quais são os seus riscos exatos. O que se sabe é que locais fechados e com grande número de pessoas são mais favoráveis a “supertransmissões”. E o transporte coletivo contém todos os ingredientes para isso.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o transporte público deve ser considerado um ambiente de alto risco em virtude do grande número de pessoas em um espaço fechado e com ventilação limitada, não existir controle de acesso para identificação de pessoas potencialmente doentes e uma variedade de superfícies que podem ser tocadas — corrimões e maçanetas, por exemplo.
Estudos realizados em países desenvolvidos como Japão, Áustria e França, no entanto, apontam que o transporte público de seus respectivos países é seguro.
No Brasil, uma nota publicada pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) indicou não haver correlação entre o uso do transporte público e o aumento de casos de Covid-19.
Mas estudos da Fiocruz e de universidades de São Paulo apontam que há, sim, grande risco de transmissão em massa do vírus no transporte público e que parte das mortes por Covid-19 são explicadas pela sua utilização.
A razão para esta discrepância se dá pela diferença entre teoria e a realidade. O transporte público seria seguro se fossem seguidas uma série de medidas de segurança, mas muitas delas acabam por ser inviáveis diante da realidade brasileira.
Diversos estudos no Brasil e no mundo se dedicaram a tentar esclarecer se o transporte coletivo é propagador ou não de Covid-19. Mas isso não é tarefa fácil. Isso porque cada país possui a sua própria peculiaridade e comportamentos únicos. Além desse fator, a questão do tempo também atrapalha. Com as novas cepas em circulação no Brasil, alguns desses estudos acabam ficando desatualizados e precisam de revisão.
Além da diferença entre o transporte público do Brasil e de países desenvolvidos, há também desigualdade de recursos entre as várias regiões brasileiras e até dentro das cidades.
É o que mostra um estudo realizado em agosto do último ano pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que cruzou os dados de mortes na cidade de São Paulo com os usuários do transporte público.
O estudo concluiu que os distritos com maior presença de população de baixa renda lideram tanto no uso de transporte público quanto nas mortes em decorrência do coronavírus.
Segundo o professor do Instituto das Cidades da Unifesp, Anderson Nakano, urbanista e demógrafo, que liderou a pesquisa, há uma forte correlação entre os dois dados coletados.
“Nós vimos uma alta correlação. Conforme aumenta o número de óbitos, aumenta o número de viagens de transporte coletivo. O fator circulação na cidade por meio de transporte coletivo ajuda a explicar bastante a disseminação. Porque quando fizemos o mesmo procedimento de viagens por automóveis não deu nenhuma correlação. Porque as pessoas que viajam de carro não se aglomeram. Vimos uma diferença muito grande no gráfico”, afirma.
Para ele, esse efeito acontece pois as pessoas de baixa renda utilizam com mais frequência o transporte público, já as pessoas de maior renda dão preferência ao transporte individual. Então as pessoas de baixa renda não teriam outra opção senão utilizar o transporte público para se deslocarem de suas residências a trabalho.
“O fato é que nem a prefeitura e nem o governo estado de São Paulo enfrentaram o problema da circulação das pessoas. Não tiveram nem coragem nem expertise, porque de fato não é simples. Numa cidade como São Paulo a circulação das pessoas é um motivo de sobrevivência. Não é só deslocamento, é pra ir trabalhar, sobreviver e ganhar o pão”.
Foi publicada em fevereiro deste ano uma análise realizada pelo urbanista Bernardo Loureiro, criador do site de análises urbanísticas Medida SP, que reforça essa questão.
A partir da análise de dados da SPTrans sobre o uso das linhas de ônibus municipais, verificou-se que em 23/03 do ano passado, no começo da pandemia, o número de passageiros teve uma redução média de 68%, em comparação com os níveis anteriores à pandemia. Já no final de 2020, na época do Natal, o número de passageiros teve uma redução média de apenas 26%, sinalizando uma retomada significativa do uso do transporte público na cidade.
Ele destaca que essa retomada não se distribui igualmente pela cidade. Nas linhas periféricas da cidade o isolamento tem caído mais acentuadamente.
“No fim de 2020, enquanto boa parte das linhas centrais em São Paulo continuavam com poucos passageiros, linhas que partem das periferias já estavam com uma quantidade de passageiros próxima ou até superior à do período pré-pandemia”
“Com as linhas mais cheias, aumenta a exposição potencial dos passageiros ao coronavírus, devido ao maior contato com outras pessoas dentro dos ônibus. Como são as linhas de ônibus que partem da periferia que estão sendo mais utilizadas, podemos concluir que os moradores da periferia estão sendo expostos a um risco maior de serem contaminados nos seus deslocamentos”, afirma.
Uma explicação para esse fenômeno seria o fim do auxílio emergencial, que teria feito com que os moradores dessas regiões passassem a se deslocar mais para trabalhos presenciais ou procurar emprego.
Um outro estudo publicado em junho pela Universidade de São Paulo (USP) revelou que a redução na oferta de ônibus em São Paulo expôs com maior intensidade os moradores da periferia ao Covid-19. A pesquisa, desenvolvida pelo Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo, concluiu que a redução da frota adotada por várias cidades brasileiras durante as medidas de distanciamento social piorou as condições de contágio por conta das aglomerações e da lotação. Segundo o estudo, a redução da frota de ônibus, pode até fazer algum sentido do ponto de vista financeiro, mas provoca lotações, aglomerações e aumenta o risco de contágio da população.
O grupo analisou as alterações autorizadas pela Prefeitura de São Paulo, em março do ano passado, para reduzir a frota de ônibus nas ruas e acompanhar a redução do número de passageiros. A conclusão foi que isso aumentou o risco de contágio dos grupos vulneráveis. Os ônibus municipais estariam circulando com até seis passageiros por m². E ainda : “alterações operacionais realizadas pelos governos estaduais e municipais no transporte público, como redução na circulação de ônibus, trens e metrô, não teriam acompanhado adequadamente a demanda e aumentaram as lotações, particularmente nas periferias de grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba, o que teria elevado o risco de contágio de doenças infecciosas, como a Covid-19, a síndrome respiratória causada pelo vírus SARS-CoV-2.”
Em nota, o Metrô de São Paulo nos informou que ampliou a higienização das estações e trens desde o início da pandemia, e que agora há limpeza ao final de cada viagem, além da lavagem profunda feita durante as madrugadas. O sistema de ar-condicionado dos trens também passa por manutenção rigorosa, com aplicação de ozônio e lavagem dos dutos, evaporadores e condensadores do ar. Segundo o Metrô, a eficiência dessas medidas é atestada pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).
Além disso, o Metrô anuncia que apenas permite a entrada de passageiros de máscara e que distribuiu um milhão de máscaras aos passageiros (circulam diariamente pelo Metrô de SP mais de sete milhões de pessoas) e faz intensas campanhas de orientação sobre os comportamentos que ajudam a prevenir a contaminação.
O secretário Alexandre Baldy defende o escalonamento obrigatório de entrada e saída de trabalhadores em atividades essenciais que sejam permitidas funcionarem, como um caminho possível para evitar a concentração de passageiros nos horários de pico no Transporte, desafogando o horário de pico (5h30 às 7h30 e de 17h às 19h30) otimizando a utilização da infraestrutura existente.
A SuperVia nos informou como medidas de proteção e conscientização dos seus clientes, instalou totens e dispensers de álcool em gel em suas estações e passou a vender passagens apenas aos passageiros que estejam utilizando máscaras no momento da compra nas bilheterias.